A mulher nos interstícios. Uma leitura d’O conto da ilha desconhecida
JOANA VIDEIRA
O conto é, como o definiu Ricardo Piglia nas suas Teses sobre o conto, “um relato que encerra um relato secreto”, uma história que conta outra de forma cifrada. O conto funde e comprime a sua materialidade narrativa para que nele caiba outro relato. Assim entendido, o conto é a história da condensação de um segredo na trama manifesta da narração, ou seja, uma duplicidade à superfície do relato. O conto da ilha desconhecida pode também ser lido desde esta tensão entre o manifesto e o invisível, o segredo e a revelação da trama. Um conto que é também duplo, ao contar em sincronia a história de duas personagens: a de um homem que quer um barco para procurar uma ilha desconhecida e a da mulher que decide acompanhá-lo. Nesta duplicidade, a personagem da mulher da obra é fundamental no processo de significação da trama. É precisamente através da construção da narrativa da mulher onde se encontra o relato secreto do conto, a sua pauta e o fundamento que dá o sentido final à trama. Através de uma composição narrativa dupla e sincrónica, o conto apresenta duas personagens que, desde lugares narrativos diferentes, acabam por convergir no momento de significar o conto e manifestar a revelação do seu sentido. Esse é também o momento no qual a personagem da mulher mostra o seu lugar protagonista e o verdadeiro alcance da sua agência até então encoberto com as ações e movimento da personagem do homem. Nesta diferença entre aparente movimento, energia, exterioridade e aparente quietude, passividade e interioridade o conto mostra duas personagens que não são, afinal, aquilo que aparenta. Enquanto que a personagem do homem desencadeia as ações fundamentais para o avanço das peripécias narrativas: pede e consegue um barco, procura tripulação, apaixona-se, sonha; já a personagem da mulher desde a quietude e o sigilo constitui o substrato teórico que acaba sendo o significado intrínseco do conto. Assim, ao nível da construção aparente e manifesta do texto, a mulher é um elemento secundário se comparada com a personagem do homem e com as contínuas ações que executa na narração. No entanto, os procedimentos de figuração da personagem da mulher fazem dela o elemento fundamental do sentido e significado final da trama, num jogo entre visível e camuflado, movimento e agência que reveste o conto de complexidade e riqueza nos seus mecanismos narrativos, como é, por outra parte, habitual na obra saramaguiana. A proposta deste ensaio analisa os mecanismos narrativos da construção das duas personagens protagonistas do conto a partir deste aparente paradoxo no qual uma ausência narrativa (a da mulher) condiciona o destino e a finalidade da narrativa visível (a do homem).
Palavras-chave: Personagem. Mulher. O conto da ilha desconhecida.
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