APRESENTAÇÃO
Há um elemento, certamente já sublinhado por outros pensadores em torno da literatura de José Saramago, e aqui retomado como princípio (um deles) que faz da obra do escritor português um lugar inestimável para refletir sobre o ponto atual da nossa civilização. Tal elemento se configura numa negação do Ego por sua multiplicidade e incerteza, um princípio que encontra eco na extensa parte das criações literárias mais importantes em Portugal depois da poética do dilaceramento do Eu e do fingimento de Fernando Pessoa. A filiação saramaguiana a esta tradição não é gratuita e é visível de maneira muito clara no trabalho e na recriação de Ricardo Reis em O ano da morte de Ricardo Reis, um dos seus mais importantes romances que recria o mais perene dos heterônimos.
Este princípio, entretanto, não renega ou substitui aquele cuja escola é comumente atribuída a James Joyce; apenas, como outros romancistas interessados em compor um romance de ideias, vê com perigo o lugar onde os escritores do Eu veem a salvação do homem. Isto é, Saramago não faz da incoerência e da descontinuidade psicológicas enquanto ruptura com a complexidade das relações sociais, nem compreende que tais elementos centrados numa interioridade sejam forças autênticas para novas relações; não acredita, por fim, que a vida subjetiva sirva ao restabelecimento do sentido e dos valores num mundo esclerosado pelo utilitarismo – as expressões são de Michel Zéraffa sobre o lugar de obras como a de André Malraux ante a escola forjada por Joyce ou Virginia Woolf. Como para o escritor francês – este que também esteve no círculo dos interesses do escritor português, se lembrarmos o motivo da criação do que seria seu último romance, Alabardas, Alabardas –, “a imagem movediça do Eu fora engendrada em cada um pelo desaparecimento do humanismo e do humano”. Ainda nos dizeres do crítico de Pessoa e personagem, a literatura que se resguarda no subjetivismo “era o signo de uma civilização petrificado, em que os homens não conheciam mais nem comunicação nem comunhão”.
Se observamos que a grande tarefa de Saramago – pela obra e pelo pensamento de intervenção – é a de, ao perceber esta condição de uma civilização em crise, reimaginá-la, oferecendo uma possibilidade de ruptura com os modelos de dominação, logo entenderemos o que aqui designamos como escolha literária. Poderíamos mesmo dizer que o projeto literário do escritor esteve interessado em conciliar o homem enquanto figura dotada de valor quando um dos seus projetos para a vida é o de guiar-se pela existência através da ação. Assim, o apagamento da inspiração poética – que não alcança de todo este sentido porque em Saramago o que se passa é uma refiguração da poética – e da individualidade, na sua ordem subjetivista, é dado em nome de oferecer aos leitores universos regidos pela força de revisão dos valores positivos e universais. No mesmo instante atribui a este exercício em nova alternativa para habitar o mundo.
Ora, se pensarmos que estamos submetidos à contínua iminência de tudo, há nesse propósito algum alumbramento de saída desse impasse impetrado pelos modelos que têm dado forma a nossa civilização. Ainda que esta possibilidade não se apresente de maneira nenhuma objetivada nos seus textos, porque o escritor também espera do seu leitor um exercício interpretativo capaz de favorecê-lo ao papel de revisor da ordem e das suas linhas de determinação. A alternativa saramaguiana, poderíamos assim designar, é sempre o de nos favorecer a ação, um elemento de cariz revolucionário que recobra necessariamente o engajamento concreto, o embate político. Daí ser o seu universo povoado de figuras notavelmente ativas, vivas e significativas em seus contextos. Ou a capacidade genial de reunir as aspirações e as angústias coletivas; seus indivíduos são encarnações dessa coletividade e, o melhor, significam linhas de estabelecimento dialético entre uma tradição que novos lugares da civilização julga sepultados em nome de interesses muitas vezes ligados intrinsecamente a uma ordem que imprime valores da submissão e da inexpressão dos indivíduos.
Toda a literatura de José Saramago firma-se pela conjunção de uma lucidez e de uma vontade. Se não oferece saídas objetivas ou rompe com a contradição – preferindo a movência dialética – é porque prefere se situar entre uma necessária essência da humanidade e uma necessária construção do humano (para repetir as mesmas palavras de Zéraffa sobre Malraux). Quer dizer, a reposição dos valores tradicionais por novos valores, ansiada por uns, residem não fora do indivíduo, mas na sua práxis, esta sim, sendo renovada pela presença do que chamaríamos de força autêntica do ser no mundo: nascemos para agir, somos pela ação e por isso em nós reside a alternativa de renovação da existência. Se observarmos o seu Ricardo Reis, notaremos que é uma personagem colocada propositalmente em confronto; todos lembram a máxima do heterônimo que geralmente é tomada como síntese de sua persona: “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”. Apesar dessa condição contemplativa não ser abolida em O ano da morte de Ricardo Reis, ela é colocada a todo tempo em questão e é mesmo reduzida pelo imperativo da ação.
Existir é atividade, criação e luta – e não se deixar levar pelos seus tumultos. Se algum dia alcançarmos essa condição, que parece situar-se por enquanto nem mesmo nas condições assumidas pelas personagens saramaguianas (embora todas constituam um libelo à ação), será preciso começar tudo outra vez, como bem sublinha um de seus narradores.
Equipe editorial
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