APRESENTAÇÃO

“Não é a pornografia que é obscena, é a fome que é obscena”. É esta a frase de José Saramago que aparece inscrita na abertura da exposição Saramago. Os pontos e a vista. Sob curadoria de Marcello Dantas, a mostra biográfica, cuja estreia se deu em São Paulo em 2018, apresenta a citação conjugada a um registro de Helena Gonçalves: uma imagem já conhecida dos visitantes da Fundação José Saramago em Lisboa e que apareceu em 2010 numa exposição da fotógrafa na Galeria das Salgadeiras (ver edição completa no final desta página). Esse conjunto formado pela frase e pela imagem sintetiza a face principal do homem-Saramago que, antes de ser escritor, permitiu-se, pelas necessidades impostas pela vida ou por conta própria, enfrentar o mundo em suas múltiplas e incongruentes dimensões através da palavra – não o signo verbal isolado, mas a ação dele decorrente. A frase e a imagem apresentam-no enquanto uma força de inquietação e rebeldia, qualidades cada vez mais escassas entre nós e tão necessárias, tanto que os efeitos maléficos de suas ausências se fazem sentir em toda parte, quando se reabre em nossa civilização o futuro enquanto imprecisão e trevas nessas primeiras décadas desse século XXI.

A recuperação dessa síntese ao lado da compreensão sobre a avaria dos tempos vigentes e vindouros reafirmam o lugar do trabalho dos leitores saramaguianos: formamos, tal como Marcello Dantas, um ajuntamento de mulheres e homens tomados pela centelha do desassossego, termo que o próprio escritor português tomou de Fernando Pessoa para engendrar uma compreensão sobre sua atuação no mundo pela literatura. Desassossegar-se é não permanecer acomodado ao espetáculo do mundo, para reavivar a expressão daquele heterônimo que o romancista transformou em personagem de um de seus romances.

Bom, tudo é para dizer que os exercícios apresentados nessas páginas uma vez a cada semestre são formas de reverberação dessa vertigem necessária à vida: estar em contínuo estágio de lucidez. A pergunta ante a afirmativa, certamente, é a mesma: como querer uma intersecção entre o homem-Saramago (pelo seu pensamento civil, é claro) e a reflexão de ordem acadêmica, marcada pela sisudez incólume da ciência? E a resposta não é tão longa, nem tão complexa.

O escritor português, assim como repetiu reiteradas vezes seu motivo de homem-ação, nos disse sobre a impossibilidade de determinar a ruptura entre o trabalho artístico e sua ideologia. De maneira que, podemos, acertadamente dizer, numa ocasião quando os materiais ideológicos constituem um espectro que tudo ronda, como dispõe Slavoj Žižek, que todo o projeto literário de José Saramago foi de construir uma ideologia da contestação; as bases para tanto parecem residir naquela escola da qual Jean-Paul Sartre foi mestre, uma condição do intelectual engajado como se verifica na leitura de Pedro Fernandes de Oliveira Neto em “Diálogos entre José Saramago e Jean-Paul Sartre” (LitCult, Rio de Janeiro, 2008).

Assim, respeitando os limites propostos pela literatura saramaguiana, não é possível excluir da ordem acadêmica os princípios de uma discussão sobre aquelas instâncias que alguns leitores mais ousados preferem colocá-las fora da órbita acadêmica: os usos da linguagem, sejam quais forem, e é disso que tratamos quando nos propomos à leitura crítica e analítica do texto literário, constituem ora de reiterações das forças discursivas porque só obtemos um discurso pela linguagem que utilizamos para nos comunicar, ora, sobretudo de aleivosias às ordens de domínio. Portanto, nossa tarefa se filia na mesma constante de constituição de novas ideologias capazes de debater, questionar, subverter, propor novas maneiras de compreender o mundo, suas dimensões e suas fronteiras.

É reiterativo e desgastado, porque aparentemente nessa nova era dos aparelhos virtuais tudo é efêmero e dura curto espaço-tempo, a expressão resistência, sobretudo entre nós brasileiros; dentre os vários sentidos para o termo, um deles sublinha trabalhos como o da Revista de Estudos Saramaguianos, dirigido sempre na contramão dos domínios. Para isso, o pensamento de José Saramago continua sendo um rico celeiro no qual podemos sempre que quisermos encontrar sentidos para o que nos soaria ultrapassado e mesmo piegas: por extensão ao desassossego parece pertinente dizer que toda atividade de leitura crítica recobra uma postura de indignado. Esse termo, aliás, desfaz a passividade que se esconde em resistir. Tem maior importância pela estreita relação que mantêm com a inquietação e a rebeldia. Com a palavra, o próprio escritor, de uma entrevista publicada na Guatemala (2001) e que finda o percurso pensado pelo autor da exposição citada no início deste editorial: “Quando eu morrer, se se puser uma lápide no sítio onde eu ficar, poderá ser qualquer coisa assim: Aqui jaz indignado, fulano de tal. Indignado, claro, por duas razões: a primeira, por já não estar vivo, e é um motivo bastante forte para nos indignarmos; e a segundo, mais séria, indignado por ter entrado num mundo injusto e sair de um mundo injusto.”

Os leitores saramaguianos sabem que, esse epitáfio possível se escreveu apenas como resposta numa conversa e ao invés desse registro, encontra-se sob a oliveira onde estão as cinzas do escritor, uma passagem de Memorial do convento, que não deixa de repisar o mesmo tom da indignação: Mas não subiu para a estrelas se era à terra que pertencia. A recusa, a negação, a condição oposta ao trivial são expressões fundadoras do espírito de indignação. Logo, indignar-se é ação.

Muito ainda temos que aprender com José Saramago. A força da sua literatura, toda ela uma leitura singular de nossa condição no mundo, e do seu pensamento estão muito à frente dessas alternativas singelas demais num mundo cuja dureza construída das camadas cada vez mais sórdidas de injustiça cada vez mais exige-nos outra posição que a da docilidade dos corpos. É sempre fundamental olhar para esse conjunto de leituras e nos perguntar em que medida cada uma delas cobra outra posição para com o texto que enfrenta e para com os lugares que desempenhamos fora dele.

Equipe editorial

SUMÁRIO

Ensaio sobre a cegueira. Diálogos com a ética estoica
PEDRO NUNES DE CASTRO
JOÃO EDUARDO P. BASTO LUPI
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O fazer metodológico da busca cotidiana. O percurso do método em Todos os nomes, de José Saramago
BRUNA DI FÁTIMA DE ALENCAR CARVALHO
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Presença da fluidez identitária em Bartolomeu Lourenço de Gusmão
THAÍLA MOURA CABRAL
TÉRCIA COSTA VALVERDE
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O tempo em Levantado do chão
LUÍS ALFREDO GALENI
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A jangada de pedra saramaguiana no processo de territorialização europeia
JOSÉ GONÇALVES
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Jornalismo, literatura e memória nas páginas de Blimunda
MARIA DO SOCORRO FURTADO VELOSO
HENRIQUE ALBERTO MENDES
PEDRO HENRIQUE TORRES BEZERRA
VIRGÍNIA NAVARRO GUEDES BRANDÃO FRÓES
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Texto, contexto e intertexto em Memorial do convento, de José Saramago
PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
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RESENHAS
Um país levantado em alegria, de Ricardo Viel (20 anos do Prémio Nobel de Literatura a José Saramago)
CHRISTOPHER ROLLASON
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