APRESENTAÇÃO
“É como se o mundo me incomodasse no sentido mais profundo”
José Saramago
O comunicado da Academia Sueca divulgado a 8 de outubro de 1998 mencionava José Saramago como o galardoado com o Prêmio Nobel de Literatura e destacava como motivo da escolha um escritor “que, com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia”. Em 2018, ocasião quando se passava vinte anos do dia glorioso e principal, quando o neto de camponeses do interior profundo de Portugal alcançou um feito que o inscreve, independente do que se cumpra depois na história do galardão, como o primeiro nome da literatura de língua portuguesa a receber tal honraria, seus leitores brasileiros seguiram as variadas manifestações de outros ao redor do mundo e se reuniram em torno de sua obra para ler, pensar e discutir ampliando o já robusto e vasto tecido que constitui o que, iluminados pela leitura de Carlos Reis, podemos chamar de sobrevida do autor. A reunião ficou conhecida como o 1º Colóquio de Estudos Saramaguianos* e pensa-se que este momento deva se concretizar num continuum debate tal como tem sido cada edição desta revista.
Há pelo menos dois princípios fundamentais que justificam tais ocasiões; os argumentos são sempre conhecidos, mas sempre necessários repetirmos para os eventuais novos leitores que se integram nesse intercâmbio. São: a genialidade de uma obra que se assume em diversas formas, e a intensa atividade militante assumida por José Saramago desde sempre, anterior mesmo à sua condição de escritor reconhecido. Essas feições condizem com um perfil singular entre aqueles cuja contribuição para a sociedade se apresenta noutras dimensões igualmente fundamentais para o seu funcionamento: as de questionar sua direção, rediscutir caminhos, problematizar decisões e rumos que, sobretudo no atual limite a que chegamos, parecem angariar forma à mercê de um complexo conjunto de decisões na maior parte das vezes impensado ou encoberto pela superfície embaciada das ideologias dominantes. Todo trabalho intelectual, embora sempre colocado à margem, se faz fundamental, uma dentre as necessidades políticas mais urgentes; é que sem o ato de pensar, única via de acesso à sensibilidade e saída para nossos problemas, redizendo o raciocínio fundamental proposto por Antonio Candido, sem ele, logo, estamos fatalmente condenados ao embrutecimento dos sentidos à barbárie, e, por sua vez, ao desfazimento da civilização, essa ordem que, desde o início da atual sociedade tem sido designada para nos definir enquanto comunidade idiossincrática.
A obra e o pensamento de José Saramago cada vez ganham melhor posição – sobretudo se considerarmos o âmbito de transformações que se mostram em várias frentes e que claramente apontam para uma encruzilhada difícil e perigosa nos rumos de um ideal de civilização que começa a deixar mais a pele de um tempo para investir-se de novas possibilidades. Isso porque toda a atividade discursiva desse escritor mostra-se contributo para uma desagregação dos arranjos até então estabelecidos enquanto verdades indubitáveis e nos cobra, sempre, alternativas melhor alinhadas com aquilo que nos coloca em relação com a ordem das coisas – alternativas realmente humanas, despidas dos limites impostos pelas dicotomias e pela santificação de determinados modelos e status quo em parte forjados pelas forças do poder dominante. Tais forças, porque inviáveis à ideia de comunidade humana, carecem, urgente, de novas leituras, e, sobretudo, de serem desconstruídas.
A literatura saramaguiana está entre aquelas que possibilitam, a um só tempo, provocações sobre seu contexto e o seu próprio lugar de criação, sem que se perca do valor fundamental para sua existência entre as mais importantes para o curso das formas artísticas moldadas pela escrita, parece ser uma alternativa para o tempo dos impasses, ou como conceitua Milan Kundera em A arte do romance, o tempo dos paradoxos terminais. Isto é, trata-se de uma obra que equilibra os valores éticos e estéticos sem que um se sobreponha ao outro e deforme o objeto artístico.
Daquele debate em torno da obra e do pensamento de José Saramago nos vinte anos da atribuição do Prêmio Nobel ao escritor, esta edição abriga parte das intervenções propostas pelos convidados. Outra parte, se contempla os textos aprovados para este número. Dois instantes, portanto, que tornam as fronteiras desse diálogo crítico com a literatura saramaguiana bastante fértil: além de propiciar o intercâmbio de experiências de leituras e perspectivas em vistas de contribuir para a tessitura de um momento fundamental na sobrevida do escritor – e igualmente para seus leitores, que encontram no seu universo ficcional e nas suas provocações, peças fundamentais para a postura de desassossegados ante esta realidade fugidia porque complexa e cujos meandros cobram de nós o necessário debate.
Entre os dois instantes que formam a edição 11 da revista, recuperamos alguns materiais que formam uma faceta pouco conhecida da escrita saramaguiana: a crítica literária. Trata-se de uma resenha escrita por José Saramago sobre Novas andanças do Demónio; o texto, inédito em livro, é acrescentado nesta edição para sublinhar outra efeméride importante – esta do ano anterior –, o centenário de Jorge de Sena. Os dois escritores, além do diálogo por cartas, em determinado momento, deixaram-se influenciar mútua e criticamente pelas leituras que fizeram de/ sobre suas obras e se mantiveram, por razões cobradas pelos seus próprios contextos, filiados ao mesmo pensamento ideológico. uma vez que eram possuidores de uma visão crítica autêntica acerca do mundo. Esse material é seguido de fac-similar de outros materiais de arquivo, incluindo uma resenha sobre O Delfim, de José Cardoso Pires (2018 foi o ano de duas décadas sobre sua morte e cinquenta anos da publicação desse romance); a partir das relações com Jorge de Sena, apontamos alguns poemas de José Saramago inéditos em livro. Essas intervenções assinalam um interesse recorrente entre a crítica mais recente, que é o de compreender outros trabalhos de escrita de Saramago, fundamentais para a contínua construção de novos sentidos acerca da obra conhecida e aberturas de outras linhas de investigação. Para isso aqui estamos.
Equipe editorial
SUMÁRIO As portas de abertura do evangelho segundo Saramago CONCEIÇÃO FLORES resumo :: ver texto O espaço da memória em José Saramago DENISE NORONHA LIMA resumo :: ver texto As marcas ancestrais na ficção de José Saramago JUREMA JOSÉ DE OLIVEIRA resumo :: ver texto A singularidade amorosa em Saramago: da ilha desconhecida à ilha do amor MARIA APARECIDA DA COSTA resumo :: ver texto INÉDITO: JOSÉ SARAMAGO, O CRÍTICO LITERÁRIO E O POETA José Saramago, breve comentário sobre o crítico literário leitor de Jorge de Sena PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO para ver o texto e esse material acesse a edição completa A cegueira saramaguiana como construtora da consciéncia coletiva JOSÉ GONÇALVES resumo :: ver texto In nomine Dei – o ocaso de deus e a agentividade do homem numa tragédia moderna MARCO AURÉLIO ABRÃO CONTE resumo :: ver texto *Os textos estão em formato PDF. Ver a edição completa.
* O 1º Colóquio de Estudos Saramaguianos aconteceu nos dias 13, 14 e 15 de junho de 2018, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal. Este evento foi proposto pelo Departamento de Comunicação Social da UFRN e pelo Grupo de Estudos sobre o Romance, do Departamento de Linguagens e Ciências Humanas da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). Teve apoio do Centro de Ciências Humanas, Artes e Letras, da UFRN e da Revista de Estudos Saramaguianos. Foi coordenado pelos professores doutores Maria do Socorro Furtado Veloso (UFRN) e Pedro Fernandes Oliveira Neto (UFERSA).