n. 14, vol. 2, ago. 2021

APRESENTAÇÃO

quando será que aprenderemos que há certas coisas que só começaremos a perceber quando nos dispusermos a remontar às fontes.

José Saramago

O pedaço de texto em epígrafe encontra-se em O evangelho segundo Jesus Cristo; seu narrador acompanha a parada de descanso da caravana que findará com a parição de Maria. Enquanto os homens usufruem de alguma comodidade, é das mulheres a responsabilidade pela manutenção da ordem das coisas, incluindo o privilégio do descanso dado primeiro a eles. A passagem é uma das infiltrações irônicas do reconhecido narrador saramaguiano ao atestar pelas vias do andamento da história desde sua imemorial origem a condição inferiorizada das mulheres. Ora situado fora do contexto como se um comentarista dos episódios narrados, ora justaposto a uma consciência do tempo em curso, duplo movimento indissociável na grande maioria das vezes mas sempre favorável ao acendimento e manutenção do contínuo plano de tensão entre a verdade estabelecida como verdade e a verdade derivada da leitura daquela, a sentença dispõe no mínimo uma dupla camada de significação e uma delas questiona sobre a legitimidade da história a partir do trabalho de minúcia documental e imparcialidade do historiador. Enquanto o narrador levanta a afirmativa muito ajustada a uma consciência do tempo da narrativa (em descompasso, espera-se, com a do leitor), o que acabou de ser contado já demonstrou factualmente sua fragilidade.

Esse jogo que sustenta o romance de 1991, sabemos, integra as características do fazer literário de José Saramago e se afirma como uma chave de leitura dentre o inalcançável rol de interpretações críticas que agora formam o que chamamos estudos saramaguianos. O gesto de justificar assumindo o equívoco do que se narra facilmente se integra a dois comportamentos bastante usuais em nosso tempo: primeiro, aceitar tacitamente o que se entrega como verdade ou justificativa para a verdade, isto é, sem atentar para os interesses que direta ou indiretamente se assomam no bulício dos acontecimentos; depois, encontrar na história a resposta definitiva para o inconveniente muitas vezes ainda em curso, como se aquela fosse impassível ou linha fixada a que todos, como se por um suntuoso respeito, ou coisa parecida, devêssemos simplesmente repeti-la. A essa fixidez intransponível — ou pelo menos assim vendida porque seu exercício é outra coisa distinta — a literatura de José Saramago oferece outra educação dos sentidos: a de mesmo vendo o que veem os olhos não se importar de desconfiar do que veem. Isso não é nossa salvação, nem nos fará melhores, mas, certamente, contribui para não continuarmos piores.

O excerto de um romance que remoça dois tipos, um mais absoluto que outro, de verdade (o histórico e o sagrado) se situa numa encruzilhada de servir a duas consciências, a que afirma e a que se interroga, mas o que se conta cobra que se tome um partido, no sentido, este termo, de uma ação, primeiro intelectiva e depois interventiva. Não é falsa a necessidade de remontar às fontes para se contar o acontecido — nem este é o problema. Como sujeitos na e da história não nos resta opção fora dela e o seu alentado fim, como levantado tantas vezes, é apenas outra das heresias impostas pelos sistemas de domínio interessados na definitiva objetificação dos sujeitos. O problema, portanto, está com os usos que fazemos das fontes, que sempre podem servir, qual o tom observador levantado pelo romance, para uma condição interrogativa dos fatos e das situações ou, como comumente se estabeleceu, como justificação para o estabelecimento dos modelos de cerceamentos vigentes. No caso específico da sentença do Evangelho, o estabelecimento de ordem de submissão das mulheres aos desígnios dos homens, como se a predisposição natural ou original — aquela radicada na biologia, esta na construção de uma mentalidade a partir da imutabilidade de suas crenças — fosse impossível de ser revista e estivéssemos obrigados a aceitar as coisas como são por certa disposição natural delas, como se essa naturalidade não fosse também produzida no interior dos jogos das verdades fundamentadas pelas ideologias e pelos interesses particulares de uns sobre os outros.

 Remontar as fontes é um exercício indispensável ao cumprimento de nossa ética civil feita da responsabilidade sobre nós e sobre os outros. Essa dívida inalienável é o compromisso para com a memória dos que pereceram para vivermos, bem ou mal, o mundo que vivemos e é o caminho de não se deixar tomar outra vez pelas nossas nebulosidades sempre a querer nos empurrar para uma desumanização. Significa dizer que as fontes não estão fixadas, nem são deterministas, tampouco sectárias. São pontos de passagem, tanto nos permitem acesso ao passado como nos permitem modificar o presente em favor de um futuro melhor — um movimento que, se à primeira vista parece óbvio, na prática, temos visto que sempre dele nos distanciamos, e pior, repetindo inquestionavelmente as decisões sobre as quais sabemos os seus resultados e depositando na história a consciência definitiva do que é puramente matéria nossa. As fontes não existem espontaneamente, nem a história se é feita sozinha; ambas são resultadas de nossas ações, movimentos feitos de nossas decisões e por isso mesmo só a nós compete a interrogação ou a permanência.

Todas as vezes que retornamos à literatura saramaguiana saímos com a inquietação sempre urgente: o que fazemos com as nossas fontes, será que ao menos vamos a elas, e as remontamos, com qual interesse? Por que, mesmo sabendo das respostas necessárias a uma saída dos rumos que tomamos, outra vez, insistimos permanecer no mesmo lugar como se um salvador pudesse nascer e redimir a todos da danação e do abismo para o qual caminhamos? Todas as vezes que vamos às fontes saramaguianas não saímos com respostas, portanto — porque essas precisam ser desenvolvidas nas nossas práticas, afinal, literatura e vida se implicam, mas esta é ação e aquela jamais deve se assumir como redenção humana. Exceto nossas ações, nada mais nos redime. Essas aberturas propostas pelas leituras que se apresentam em edições como estas da Revista de Estudos Saramaguianos podem servir a muitos começos — inclusive o de reaprendizagem com as fontes.

Em Viagem a Portugal lemos que “É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles.” E é isso o que fazemos. Nesta edição, voltamos às crônicas para discutir esse tópico da história, tão caro à literatura e ao pensamento saramaguianos; ao próprio Evangelho, obra que alcança neste ano três décadas desde a sua publicação; ao último romance de José Saramago, texto que amplifica a leitura desconstrutora das bases do pensamento cristão levantada pelo livro de 1991; às obras que se abrem para uma interrogação do que somos e esboçam uma parábola de nossos impasses enquanto civilização e enquanto sujeitos, Todos nomes e A caverna. Acompanhamos, assim, um percurso que se insinua pelo interior da própria obra e dela se lança a outros destinos, pensar e interrogar sobre os nossos destinos enquanto corpo comunitário, presença ética e política ou nossas condições no interior da vida que escolhemos.

A outras fontes, esse itinerário é enriquecido com a reprodução de um texto que assinala a porfia do escritor que se tornaria, em 1998, Prêmio Nobel de Literatura: numa apresentação feita por ele sobre peça Sísifo e a morte regressamos ao trato de crítico literário. Desta vez, o leitor do dramaturgo Robert Merle, aparecido no folheto de único número datado de maio de 1956, A voz de Tebas. Ou seja, é o autor já de A viúva (Terra do pecado) e do então esquecido Claraboia que só ganhará forma de livro postumamente, mas não é ainda o poeta que aparecerá com Os poemas possíveis, marco desse rico período de experimentação criativa; este só chegará uma década mais tarde. Muito ainda resta para descobrir — dos já vistos e dos guardados pelo tempo. Para isso estamos aqui.

Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Equipe editorial

SUMÁRIO

O evangelho saramaguiano: espraiamento de possibilidades
NEFATALIN GONÇALVES NETO
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Saramago e a pós-verdade
MARIANA PERIZZOLO LENCINA 
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Reflexões sobre o fazer historiográfico na crônica “As memórias alheias” de José Saramago
RODRIGO CONÇOLE LAGE
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Entre el amor y el odio: Caín el portavoz del dolor y la indignación
MAXIMILIANO JOSÉ SUAREZ
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Trilhos da liberdade: diálogo filosófico com Platão e Byung-Chul Han(A caverna, de José Saramago)
MARIA ALCINA CARMO DIAS
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Portas abertas para o Sr. José: o percurso de indagação da personagem de Todos os nomes
MARIA CAROLINA DE OLIVEIRA BARBOSA GAMA
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INÉDITO: Sísifo e a morte
JOSÉ SARAMAGO
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