Apresentação
No discurso pronunciado na Academia Sueca quando da recepção do Prêmio Nobel de Literatura, José Saramago refaz um gesto pirandelliano: confundidas as instâncias discursivas ou reavivando na prática sua compreensão muito própria segundo a qual autor e narrador constituem a voz original e definitiva da enunciação ficcional, parte significativa da extensa galeria de figuras modeladas do ato criativo, incluindo àquelas com existência circunstanciada pelas fronteiras da história, aparece convocada pelo fio da memória e se apresentam como aquelas “que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver”. As personagens, por sua vez, não estão à procura de um autor. É o contrário, o que se passa: o autor está à sua própria procura e são “esses homens e essas mulheres feitos de papel e de tinta” que o ajudam a responder e agora, quem eu sou? O gesto do escritor reafirma não apenas o respeito pelo imaginário literário como dimensão essencial da nossa existência como singulariza sua humildade ao se despir do lugar que o prêmio concedido o lançava: o galardão, sabemos, o reconhecia mestre da criação. Mas o autor do discurso prefere e se apresenta como aprendiz.
Sabemos o reconhecimento de José Saramago sobre o papel e a importância do leitor. Sua concepção do autor como a voz universal do enunciado ficcional, por exemplo, vislumbra que este sujeito da outra margem no sistema comunicativo se desloca de uma posição de receptor para artesania, uma vez lidar com a atividade fabril da criação: “O leitor também escreve o livro quando lhe penetra o sentido, o interroga” (Extra, 1978); “O leitor se transforma, no ato mesmo de sua leitura, em elemento a mais dessa ficção. Ler é participar, neste caso. O leitor possui uma consciência tão completa como a do próprio autor ou a do narrador de que tudo quanto se narra é fabulação” (Quimera, 1986). Os exemplos que ilustraria pela ordem do fragmento uma teorética saramaguiana do leitor e da leitura, dentro e fora da sua obra, são muitos. Em A caverna, para reiterar um passo na literatura saramaguiana, encontramos um diálogo entre Cipriano Algor e a filha Marta; assim diz o oleiro: Não serve a mesma [forma de ler] para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa (p. 77).
Em “De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz” não são apenas as dimensões do mestre que aparecem questionadas, o discurso reengendra o leitor. Provam como a ficção penetra a vida, modificando-a. Fazendo-se mestre-aprendiz, José Saramago ilustra seu processo de aprendizagem pela leitura, ou uma das formas de ler, refazendo o eco de Cipriano Algor. No interior desse discurso, reavivando certo dispositivo da metalinguagem, escrever e ler constituem duas instâncias de um ato cujo resultado é transformação dos atores implicados no gesto da escrita e no gesto da leitura. “Somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não” (O Globo, 1997) — dirá. E não se trata, obviamente, de reduzir o escritor ao leitor, ou vice-versa; mesmo no caso em que essas instâncias se confundem, como no discurso referido, quem escreve está sempre um passo à frente do leitor. E se ao leitor cabe atribuir vida ao fabulado, é também dele o papel de transpor a obra para adiante dos umbrais do tempo que a viu se constituir.
Quando convoca ao seu plano os seus seres de tinta e papel, Saramago lida com a sobrevida da personagem, algo que Carlos Reis, no seu indispensável Dicionário de Estudos Narrativos designa como o “prolongamento das suas propriedades distintivas [das personagens], como figura ficcional, permitindo reconhecer essas propriedades noutras figurações” (p. 485). E a partir desta imagem disposta no discurso de 10 de dezembro de 1998 é possível estabelecer o que é talvez o papel mais singular do leitor: aquele que prolonga para fora dos estritos limites do seu tempo e o do seu espaço, garantindo a sua permanência e a sua autonomia — e com a obra, também o seu autor, integrando-os noutros campos de significações que permitem o enriquecimento contínuo dos campos simbólicos que os/nos constituem. Solitário ou coletivo, isso integra a leitura num dos gestos mais singulares e bonitos no grande catálogo das nossas criações culturais.
Esse mover-se reitera uma atitude que cresce subterraneamente desde o gesto pirandelliano no discurso de recebimento do Nobel; são maneiras, sempre diversas mas uma só, de compreender o que seria, para José Saramago, o leitor ideal: tal como espera do indivíduo na comunidade, que este seja atitude, o escritor sempre quis leitores capazes de transpor o primeiro plano da leitura, o da decodificação e da repetição para alcançar o sentido, mantendo em atividade a engrenagem que ele próprio articulou e que se coloca em funcionamento com o ato de ler: sabemos como o leitor do romance saramaguiano é corresponsável no trabalho de composição do discurso ficcional. Soma-se a isso certa dimensão ética que nunca deixa de conviver com o estético; para Saramago, “ser escritor não é apenas escrever livros, é muito mais uma atitude perante a vida, uma exigência e uma intervenção” (Extra, 1978); algo que se singulariza com a já conhecida afirmativa: “Eu vivo desassossegado, escrevo para desassossegar” (El Mundo, 1998).
Certa vez, José Saramago disse que “gostaria de reunir todos os meus leitores e dialogar com eles” (La Nación, 1998). O desejo, claro está,foi parar no território dos possíveis. Se a comunidade de leitores no tempo dessa afirmação era impossível de abraçar, passados muitos anos, se fez ainda mais numerosa, um acontecimento bom se pensarmos o quanto necessitamos no tempo vigente de leitores que não se abandonem ao espetáculo do mundo. Uma maneira de medir essa expansão foi o longo do aniversário de 100 anos celebrado em 365 dias com expressões das mais variadas — os inúmeros dossiês acadêmicos, produzidos ou não de encontros de/em diversos formatos, as manifestações artísticas, os espaços de leituras, as novas publicações, os estudos da obra etc. Impossível de alcançar os leitores em sua totalidade, essas células, replicam o sonho do escritor e sua comunidade ideal.
2022 acabou. 2022 continua. A reescrita da conclusão de Fernando Pessoa para um texto que recordava as duas décadas de Orpheu, a marca indelével na cultura literária portuguesa do século XX, é proposital.¹ O ano do centenário, que bem poderia começar de agora para o ano seguinte, mas se adiantou do ano passado para agora, findou. As extensões que se abriram neste ano, que fizeram o gesto da leitura um acontecimento, permanecem. Assim queremos.
Pedro Fernandes de Oliveira Neto
Equipe editorial
Notas
1 Trata-se de “Nós os de Orpheu”, texto publicado na edição n. 3 da revista Sudoeste (Lisboa, nov., 1935). A frase é “Orpheu acabou. Orpheu continua”.
SUMÁRIO “Aqui, na terra, a fome continua”: para uma leitura de Os poemas possíveis CARLOS NOGUEIRA resumo :: ver texto A exigência estética no “período formativo” da obra de José Saramago CHARLES VITOR BERNDT resumo :: ver texto Experiência e expectativa em Memorial do convento JOÃO ADOLFO HANSEN resumo :: ver texto “É TEMPO…” JOSÉ SARAMAGO Para acessar este texto veja a edição completa O “como se” — tentativa do não esquecimento na ficção de Saramago e Revueltas, dois romances ROCÍO MARTÍNEZ DÍAZ resumo :: ver texto As últimas fábulas LEYLA PERRONE-MOISÉS resumo :: ver texto Lições da pedra no romance de José Saramago: em busca da outra margem KÁTIA PELLICCI CEMBRONE VERA BASTAZIN resumo :: ver texto José Saramago y la comunidad que viene (acerca de la invención de la pandemia) MIGUEL ALBERTO KOLEFF resumo :: ver texto Reescrita e paródia em José Saramago: as personagens femininas de O evangelho segundo Jesus Cristo TAMIRES FARIAS BARBOSA MARCELO LACHAT resumo :: ver texto Da pedra à estátua: pedra EULA CARVALHO PINHEIRO resumo :: ver texto * Os textos estão em formato PDF. Ver edição completa.
