APRESENTAÇÃO
Alguns dos mais importantes acontecimentos da grande virada cultural no Ocidente depois do Romantismo alcançam o primeiro século em 2022; entre os marcos encontramos a publicação do Ulysses de James Joyce, The Waste Land de T. S. Eliot, do Jacob’s Room de Virginia Woolf, Trilce de César Vallejo e Pauliceia desvairada de Mário de Andrade. Embora sejam essas situações que independem dos afluxos casuais da natureza, o annus mirabilis testemunha ainda a chegada de uma geração que prolongará o inesgotável projeto de rupturas e de renovações do que passou a se designar como Modernismo: na Itália nasce Pier Paolo Pasolini; nos Estados Unidos, Jack Kerouac; em Portugal, Agustina Bessa-Luís e José Saramago.
O escritor filho de uma família simples no interior profundo de Portugal tinha tudo — se essas infinitas linhas do destino operassem apenas por roteiros pré-determinados — para ser um nome a mais entre os incalculáveis sujeitos que vieram ao mundo em 1922 e sobre os quais nem mesmo o nome se sabe; registre-se, para efeito, além das tragédias individuais, o extenso ciclo dos horrores na Europa do século XX. Mas de escassa oportunidade em escassa oportunidade, José Saramago agarrou-se como pôde à vida até alcançar presença numa pequena lista, a mesma onde estavam situados os autores dos feitos do ano de seu nascimento e que constitui, em limites de imprecisa extensão, a história da cultura literária ocidental.
Não foi apenas a obra romanesca que, sem dúvidas, acrescentou novas possibilidades à arte da narrativa ficcional, nem o feito inédito de ser um escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura; foi também sua postura de ativista pela palavra sobre os importantes temas e grandes desafios até agora não superados pelo projeto de civilização em curso, afinal, como escreveu nos versos de “Fala do Velho do Restelo ao astronauta”, de Os poemas possíveis, “Aqui, na Terra, a fome continua, / A miséria, o luto, e outra vez a fome”, ainda “Acendemos cigarros em fogos de napalme / E dizemos amor sem saber o que seja”.
Uma vez ingressado no plano elevado do comunitário ao qual pertencemos todos, os com e os sem nome, a obra e as ideias do escritor constituem pontos de valiosa significação como se tornavam as obras e as ideias dos escritores naquele 1922. Este e o próximo número da Revista de Estudos Saramaguianos somam-se a um trabalho agora coletivo e espalhado nos cinco continentes de remarcar os significados de José Saramago para a literatura, o pensamento estético e ético do século em que viveu, apontando para os séculos da sobrevida — algo que os leitores têm testemunhado há muito, e melhor nesse ano que começou, insolitamente e muito ao gosto saramaguiano, a 16 de novembro de 2021.
O caso saramaguiano, portanto, reveste-se de algumas singularidades no âmbito dos centenários de 2022. A efeméride privilegia contornos fora do âmbito da memória de celebração. E isso se deve ao valor interventivo das obras e das ideias do escritor; são elas possibilidades na necessária revista e expansão dos saberes e parte ativa no debate sobre nosso lugar e papel nos destinos da história particular e coletiva. Esses princípios formam o universo criativo de José Saramago desde os anos de experimentação, marcadamente pela tentativa de filiação aos modelos literários derivados dos ventos de 1922, e vincaram expressividade quando sua presença se estabelece entre as principais mentes pensantes dentro e fora do seu país.
A obra e as ideias saramaguianas — tanto já se disse mas redizer não é monotema — se propuseram revisar alguns dos principais discursos de sustento da nossa civilização: os da história; os da religião cristã; e os da poder. A partir disso, passa pelo seu crivo o mito, a verdade, a tradição, a modernidade, as mais diversas esferas dos modelos sociais, da cultura, os procedimentos literários e ficcionais, uma ética do indivíduo na coletividade etc. Isto é, todo um complexo inventário que nos constitui como pessoas, sujeitos e cidadãos, o que, noutras palavras, é de abrangência do estético e do ético, dimensões que se imbricam na/ pela literatura saramaguiana. Contribuir com o debate sobre essas e tantas outras questões, é extremamente necessário: é pelo legado saramaguiano, mas é sobretudo pelas urgências do nosso tempo para que daqui a cem anos, tomara, os que vierem depois de nós possam encontrar a comunidade humana num patamar melhor que encontramos agora.
Os textos reunidos no 15º número da Revista de Estudos Saramaguianos se mostram, como tem sido recorrente, entre o tratamento crítico e interpretativo da obra e a disposição de problematizar interesses, ideias e levantar compreensões dos diversos fenômenos inerentes ao fazer literário e da nossa maneira de ser e estar no mundo. Certamente é este um dos valores que podemos levantar sempre que a sociedade da técnica e da prática cobra aos estudiosos do texto literário uma contribuição para as saídas que tanto necessitamos.
Equipe Editorial
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